Fotografia da resistência: mapa virtual reúne iniciativas solidárias e comunidades vulneráveis de Curitiba

Levantamento feito por universidade e organizações sociais evidencia a ação solidária e menos visível que emerge da periferia.

Incidência da Covid-19 tem se manifestando de forma mais intensa nas áreas periféricas. Foto: Plural

Com alta densidade populacional, casas muito próximas, falta de saneamento e de oferta de água regularizada e sem acesso a grande parte dos serviços públicos, as áreas urbanas periféricas apresentam maior vulnerabilidade ao contágio pela Covid-19. Os mapeamentos feitos por pesquisadores e observatórios e a manifestação da pandemia mostram maior letalidade da doença nas periferias do que em áreas centrais.

Dados do grupo Paraná contra a Covid-19 mostram, por exemplo, que, ao passo que Curitiba registra 5 óbitos para cada 100 infectados com o vírus, Campina Grande do Sul, município da Região Metropolitana com maior taxa de ocupações irregulares, registra 17 óbitos para cada 100 casos de pessoas infectadas pelo vírus.

A relação entre a incidência de casos nas àreas periféricas e o desenvolvimento de ações de assistência social como medida de contenção à pandemia ainda não é, no entanto, observada pelo poder público. “A gente não encontrou algum trabalho da Prefeitura [de Curitiba] e Região Metropolitiana que relacionasse as realidades de territórios vulneráveis com as ações de apoio às famílias. Não há ainda um trabalho em diagnosticar espaços mais vulneráveis e fazer as doações proporcionais às necessidades das pessoas”, destaca a professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), Simone Polli.

 “O que temos visto são dados de saúde e não dados socioassistenciais. A Covid-19 vai além do caso da saúde, tem implicações na questão da moradia, saneamento, trabalho, economia, etc. Não temos visto um mapeamento mais amplo para entender as vulnerabilidades sociais de quem demanda ações de proteção à pandemia”, complementa Simone.

Facilitar a conexão entre as áreas mais vulneráveis e a abrangência territorial das ações solidárias foi o ponto de partida para iniciar o mapeamento de iniciativas de solidariedade e comunidades em Curitiba e municípios da região Metropolitana, como Colombo, Almirante Tamandaré e Araucária. O trabalho foi realizado pelo projeto de extensão da UTFPR “Mapa da Solidariedade”, coordenado por Simone e integrado por estudantes, conjuntamente com o Centro de Formação Urbano Rural Irmã Araújo (Cefuria), Observatório das Metrópoles – Curitiba e apoio da Terra de Direitos.

A partir de contato com lideranças comunitárias, levantamento de iniciativas da rede socioassistencial e dados públicos, o mapeamento oferta não apenas uma fotografia das comunidades vulneráveis e das iniciativas solidárias durante a pandemia, como também possibilita a conexão entre quem doa e quem demanda doação.

Além da ameaça pelo coronavírus, outro agravante que se coloca com força nas comunidades neste momento é a diminuição da renda familiar. Com a quarentena, as famílias viram suas rendas advindas do trabalho informal diminuírem sensivelmente. São trabalhadoras domésticas, pedreiros, cabeleireiras, catadores de materiais recicláveis e de outros ofícios, que saem logo cedo para trazer à noite o provimento para aquele dia. Neste período as e os trabalhadores foram dispensados ou tiveram uma forte diminuição do volume de trabalho. Desassistidos pelo Estado, cujas políticas tem sido insuficientes e burocratizadas, tem sido as iniciativas solidárias que garantem alimentos, água e produtos de higiene para as comunidades, entre outros provimentos.

Para as famílias, a quem o auxílio emergencial do governo não chegará ou virá posterior ao atendimento das necessidades mais básicas, como alimentação, o estreitamento da distância entre as comunidades e as iniciativas solidárias promovido pelo mapeamento é um alento. Para Simone, a iniciativa é uma evidência de que a universidade pública cumpre sua função em disponibilizar conhecimento para atendimento das necessidades concretas. “A universidade tem muito a contribuir neste tempo de pandemia e não deve estar descolada da sociedade, cumprindo sua função social”, destaca.

Questões estruturais 
Com 984 espaços informais de moradia, entre favelas, loteamentos clandestinos e irregulares, em 11 dos 14 municípios que compoem a metrópole de Curitiba, de acordo com dados levantados pela professora da UFPR, Madianita Silva, nos planos locais de habitação destes municípios, a falta de moradia adequada mostra-se como forte porta de entrada de vulnerabilidades à pandemia para as comunidades. Os moradores de ocupações irregulares, conhecidas como favelas, sofrem com a pequena metragem da habitação para a quantidade de moradores, o acesso não regularizado aos serviços essenciais como água, saneamento, energia elétrica, e com precariedade na construção.

Outro aspecto relevante, e que traz ainda maiores dificuldades neste momento de pandemia, é a dificuldade de acesso a infra-estrutura urbana, pois essas áreas geralmente são negligenciadas pelo Poder Público quanto à construção de ruas e calçadas, áreas públicas de saúde, educação e lazer, bem como acesso ao transporte público em quantidade suficiente para a demanda dessas áreas mais adensadas.

Em Curitiba, quase 20% da população do município vive em assentamentos sem regularização fundiária. Boa parte destes assentamentos se localizam na região sul e extremo sul da cidade que apresentam péssimos índices relativos às condições habitacionais urbanas; atendimento de serviços coletivos urbanos e infraestrutura urbana”, destaca o pesquisador do Observatório das Metrópoles Núcleo Curitiba e pós-doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), Marcelo de Souza. “Nossa pesquisa, por exemplo, identificou ocupações ao sul da cidade que estão há 14 km do terminal de ônibus mais próximo”, relata ele.

“A paralisação pelo Poder Público de políticas de produção de moradia popular em áreas com acesso a infra-estrutura e também de políticas de regularização fundiária que incluam projeto de urbanização da área ocupada, faz com que muitas famílias estejam numa situação de precariedade habitacional grave, tornando-as mais vulneráveis em situações de crise de saúde e socioeconômica como a atual. E embora estas áreas sejam mais vulneráveis, elas não têm recebido correspondentes ações de assistência social pelo poder público”, aponta a assessora jurídica da Terra de Direitos, Daisy Ribeiro. Em razão disso, as organizações propõem um plano emergencial de assistência social para Curitiba.

Um impacto direto da desigualdade socioespacial diz respeito ao acesso às unidades de saúde para atendimento aos casos mais graves da Covid-19 na população. A mobilidade urbana e o acesso ao sistema público de saúde, como aponta recente pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), possuem outra configuração para comunidades periféricas. “A disponibilidade de leitos de UTI [Unidade de terapia intensiva] e respiradores para atender a pacientes em estado grave com suspeita de Covid-19 tende a ser consideravelmente menor nas periferias dessas cidades. E, nesse sentido, a relação entre a distância entre estes bairros periféricos e os estabelecimentos com capacidade para atender os casos mais graves de Covid-19, agravada pela baixa taxa de mobilidade urbana, ocasionada pelo baixo número de ônibus disponíveis, é mais um indicativo da seletividade social das medidas adotadas pelo Estado”, destaca Marcelo.

Mapa revela que maior parte das inciativas solidárias partem das comunidades.

Revelações do mapeamento
O mapeamento revela muito sobre o direito à moradia adequada a uma capital que é anunciada pelo poder público como “cidade modelo”. Se a precarização habitacional – que é condição de aumento de exposição ao coronavírus – está mais concentrada na região sul de Curitiba, é de lá, como estratégia de sobrevivência, que está a maior parte das iniciativas de solidariedade mapeadas. Cerca de 76% das ações, como coleta de alimentos, produtos de higiene e outras atividades solidárias partem de organizações, associações de moradores ou grupos espontâneos criados no contexto no pandemia localizados e atuantes em territórios vulneráveis, majoritariamente nesta porção da cidade.

Não tão visíveis quanto a ação solidária de organizações mais conhecidas e estruturadas, as iniciativas menores de apoio nas periferias possuem um importante elo com as necessidades das famílias. São as iniciativas geridas pela comunidade que melhor conhecem as realidades locais. Nesse contexto, estão o trabalho de grupos de mães, a parceria entre uma associação comunitária e um mercado local fornecedor de alimentos, por exemplo.  “O mapa serve também para levantar estas iniciativas da periferia que são invisíveis até para quem quer oferecer ajuda solidária”, relata a integrante do Centro de Formação Urbano Rural Irmã Araújo (Cefuria), Vanda de Assis.

A alta porcentagem de iniciativas desenvolvidas nas comunidades também se contrapõe à narrativa que atribui à periferia uma baixa organização comunitária e postura passiva diante da pandemia, à espera da ajuda externa. “O dado é uma demonstração de que a organização coletiva popular é o que constrói solidariedade e garante sobrevivência. Dizer que as comunidades não tem se movimentado para resistir à pandemia é desconhecimento. As comunidades se manifestam a seu modo”, destaca Vanda. Ela relata que foram as lideranças comunitárias contatadas pelas organizações e Universidade que relataram a maior parte da existência das iniciativas solidárias.

Preenchimento colaborativo
Mapa da Solidariedade também está hospedado na plataforma Paraná contra a Covid-19, uma iniciativa de profissionais e estudantes de reunião de informações de análise e enfrentamento da pandemia no estado.

Por meio da plataforma, qualquer cidadão pode colaborar com envio de informações de mais iniciativas de solidariedade e comunidades vulneráveis. Como o mapeamento é colaborativo, os realizadores da Plataforma e do Mapa de Solidariedade ressalvam que não tem controle sobre as iniciativas cadastradas e o encaminhamento das doações, não podendo se responsabilizar pelas entidades ali elencadas. A sugestão é que pessoas interessadas em doar contatem diretamente as iniciativas e possam assim obter mais informações.

Fonte: Terra de Direitos

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