A afirmação é de Antonio Fernando Gouvêa da Silva, professor universitário e pesquisador da metodologia freireana, que ministrou curso sobre educação popular sindical para trabalhadores da saúde pública estadual ligados ao Sindsaúde.
Por Ednubia Ghisi
Para o professor Antonio Fernando Gouvêa da Silva, saber ouvir e problematizar são duas qualidade necessárias às lideranças populares. A partir desses dois elementos, é possível contribuir para a superação de visões de mundo fragmentadas e parciais, muitas vezes disseminadas pelos grandes meios de comunicação e pelo poder instituído.
Gouvea é doutor em Educação, professor universitário e pesquisador da pedagogia freireana, e esteve em Curitiba para assessorar a Oficina de Metodologia Freirena, realizada em julho e agosto, em duas etapas. O curso faz parte da primeira fase do programa de formação do Sindicato dos Trabalhadores da Saúde Pública do Paraná – Sindsaúde, desenvolvido em parceria com o Cefuria.
Nessa entrevista, o professor opina sobre a interface entre a educação popular e a luta sindical, os desafios para o trabalho de base e a onda conservadora no campo da educação, protagonizada pelo movimento ‘Escola Sem Partido’.
Confira a entrevista:
Qual a relação entre a atuação sindical, o trabalho de base, com a educação popular freireana?
Muitas vezes a gente, por mais engajados que sejamos na atuação para a transformação de uma realidade injusta, reproduzimos com o companheiro do sindicato a maneira autoritária com que a sociedade, a burguesia, a escola age. Não acho que a gente faça isso propositadamente, mas vejo que está tão arraigado na nossa cultura, nas relações e nas formas de comunicação, que a gente não constrói a luta com o colega, mas vai lá para dizer em que luta ele tem que entrar. O grande problema disso tudo é que isso não funciona, porque as pessoas, evidentemente, têm uma forma de pensar, de compreender o mundo diferente daquelas. Se elas tivessem a mesma forma de pensar, é certo que já estariam engajadas no movimento.
Problematizar as visões de mundo
É fundamental que toda liderança tenha a capacidade de ouvir e de problematizar visões de mundo que são construídas historicamente, que são fragmentadas e parciais. Muitas vezes são visões construídas a partir dos interesses da mídia, do poder instituído, dos grandes grupos, ou de ‘verdades’ que foram introjetadas há muito tempo na nossa cultura e que a gente acaba reproduzindo numa prática que o Paulo Freire chamava de bancária, de depositar no outro a nossa verdade. Isso não funciona. Todos nós – e ainda bem – pensamos a partir dos nossos referenciais. Se eu quero ajudar o meu companheiro a mudar de referencial e de critério para analisar a realidade para compreender o movimento sindical, eu tenho que construir com ele os novos critérios, e não tentar impor sobre ele os novos critérios. Aí é que cabe o trabalho de educação popular, para possibilitar essa construção.
Qual o papel das redes sociais nessa tarefa, em especial com o cenário de acirramento de posições políticas?
Eu não acho que Facebook faz uma comunicação dialógica. Muitas vezes ele é usado como espaço para o escape de visões de mundo que as pessoas, muitas vezes, têm vergonha de assumir publicamente. Ela se oculta atrás dessa ferramenta. Mas acho que é um espaço de interlocução importante. Eu já acompanhei muitas vezes algumas críticas a reportagens na internet em que aquele cara que fala a mesma coisa que eu penso, mas de uma maneira altamente autoritária, e outros que falam a mesma coisa que eu penso, mas provocam o discurso inicial a uma reflexão. Ou seja, convida o outro a um debate crítico, e não responde no ‘olho por olho, dente por dente’.
Como estudioso da teoria de Paulo Freire, como você avalia o avanço do movimento ‘Escola Sem Partido’?
Primeiro que essa ideia é uma falácia desde o início. Não existe escola sem partido por uma única razão: toda ação humana tem sempre uma intenção. Uma escola que é apática, passiva ou que muitas vezes estimula preconceitos raciais, sociais ou em relação à gênero, que desqualifica alguns cidadãos em detrimento de outro, essa escola não é sem partido. Ela já tem um partido, mas não assume o papel político que exerce. Portanto, é preciso perceber que não há neutralidade no ato educativo, como em nenhuma prática humana. Se não há neutralidade, qual é o partido que existe ali? É o do partido autoritarismo, da perpetuação e legitimação de uma elite econômica e intelectual que se impõe de maneira coercitiva sobre a maior parte da população, que tenta fazer com que as pessoas consideram legítima as situações de desigualdade. O que este grupo está defendendo é uma escola de partido único, e normalmente a gente chama isso de ditadura. O que elas [pessoas que aderem a escola sem partido] dizem é: ‘o que vocês fazem é política’, e a pergunta que fica é: ‘e o que vocês fazem não é política?’
E esse tipo de pensamento se explicita também nos ataques à figura de Paulo Freire…
Eu fico feliz, não fico triste. Porque as pessoas estão entendendo perfeitamente do que se trata. Elas estão defendendo uma visão de escola reacionária, que não quer forma cidadão, e sim formar gente para o mercado de trabalho, onde as pessoas reproduzam o que o órgão central autoritariamente impõe. Elas não querem que as crianças pensem, que as pessoas passem pela escola e pensem de uma maneira diferente. Ou seja, a grande lição que te faz ser aprovado no ensino fundamental, médio e superior, de uma educação autoritária, capitalista, é ‘seja subserviente’. Se você aprender isso, você vai ser aprovado. Não pense que é saber fazer raiz quadrada, fórmula da fotossíntese ou quem descobriu o Brasil. Você só é aprovado se disser sim, mesmo que esse sim signifique um autoprejuízo. O grande discurso da ‘escola sem partido’ e do ataque a Paulo Freire é a perpetuação disso. O Freire sempre defendeu que escola é um lugar para ser ético, para construir a felicidade das pessoas, e não para domesticá-las, para elas aceitarem uma situação de submissão em relação às desigualdades sociais vigentes.
Há leituras de que caminhamos para um novo ciclo da esquerda. O que você indica como erros que não poderiam se repetir?
A minha intenção política é justamente fazer uma crítica a um momento histórico que foi super relevante dos anos 70, 80, 90 em relação às mobilizações sindicais, mas que muitas vezes foi, nas suas práticas, autoritária e centralizadora. Basta ler o primeiro capítulo da Pedagogia do Oprimido, que Paulo Freire escreve no Chile, em 1969. Lá, ele deixa claro que, por muitas vezes, por melhor que sejam as intenções de determinados grupos de esquerda, na prática eles acabam sendo tão autoritários como alguns grupos de direita. A maior parte das vezes isso ocorre não intencionalmente, mas até por não saber fazer diferente. A curto prazo a gente teve várias conquistas, mas a médio e longo prazo se mostrou fragilizado, porque as pessoas se engajavam em lutas, mas não mudavam a sua forma de interpretar a realidade, não mudavam de concepção. Iam buscar o imediatismo de uma resposta pontual, particular.
Construção de novas visões de mundo
Se eu pudesse ter algum tipo de contribuição de um novo ciclo da esquerda, eu diria: vamos aproveitar os nossos avanços, mas vamos fazer as críticas, e uma delas é de como a gente constrói visões de mundo mais éticas, humanizadoras e coletivas, e supera as visões particulares, individualistas, egoístas. Não dizendo para as pessoas que elas são egoístas e individualistas, mas problematizando com elas as consequências dessa visão e como nestas visões todos sofrem, inclusive elas mesmas.
> Saiba mais sobre o projeto realizado em conjunto pelo Cefuria e o Sindsaúde:
29/07 – Cefuria e Sindsaúde iniciam formação sindical em educação popular