Por: Ednubia Ghisi
“Cidade modelo”, “Cidade humana”, “Cidade planejada”, “Capital ecológica”, “Capital brasileira de Primeiro Mundo”. Esses são alguns dos slogans difundidos a partir da década de 1970, pelo então prefeito de Curitiba Jaime Lerner (que governou entre 1971-1975, 1979-1984 e 1989-1992). A extensa campanha de marketing levou a capital paranaense a ter reconhecimento internacional no quesito planejamento urbano, e também atraiu interioranos de todo estado, expulsos do campo pelo avanço da monocultura e atraídos pelo mito da cidade modelo.
Já naquelas décadas ficaram evidentes as limitações do planejamento marcado pela segregação territorial dos mais pobres e pela dificuldade no acesso à moraria, transporte e saúde – para citar apenas três fortes lutas populares daqueles anos. O resultado está marcado na Curitiba de hoje, com regiões e bairros moldados por históricas falhas do Estado. A Vila Harmonia, no bairro Barigui (Regional CIC), a Vila Parque Nacional, no Acrópole, (Regional Cajuru), e a Vila Beira Rio, do Bela Vista da Ordem (Regional Pinheirinho), são exemplos sintomáticos. Localizadas em beiras de rio, com situação fundiária irregular, altos índices de criminalidade e falta de acesso a serviços públicos.
Essas são as três comunidades que farão parte do projeto “Formação Político – Cidadã para o mundo do trabalho”, iniciado em outubro a partir de parceria entre o Cefuria e a Fundação de Ação Social – FAS, como parte do Programa Curitiba Mais Humana, previsto no Plano Plurianual e no Plano de Governo da Prefeitura Municipal. O convênio com a prefeitura para a realização de formação voltada à educação popular é inédito na história do Cefuria, embora a entidade já tenha atuando em outras parcerias com o poder público.
O projeto busca a mudança do paradigma das relações entre os gestores públicos e as comunidades, para que a atuação parta efetivamente da escuta à população, e que as ações e serviços públicos sejam desenvolvidos a partir do diálogo. “A ideia é descobrir lideranças novas, ouvir e identificar as potencialidades de criatividade de produção que as pessoas tenham, pra já pensar na perspectiva da organização da comunidade para o mundo do trabalho”, aponta Ana Inês, socióloga e coordenadora do Cefuria.
Para a socióloga, o projeto significa a esperança de poder contribuir com a transformação das comunidades mais vulneráveis social e economicamente, a partir do fortalecimento daqueles que trabalham diretamente com
o público. Para isso, pelo menos 65 profissionais que atuam nas áreas priorizadas e a população moradora da região vão participar de formações sobre a metodologia do educador pernambucano Paulo Freire e sobre o mundo do trabalho, na perspectiva da economia solidária. Além das três Regionais diretamente incluídas no projeto, outras seis estão sendo convidadas a participar dos momentos formativos.
Marli Ap. de Oliveira Gonçalves, assistente social e servidora da FAS que acompanha o desenvolvimento do projeto, avalia este momento como oportuno para revisitar práticas, olhares e concepções na relação com as populações que acessam a política pública de assistência, afirma: “Precisamos avançar no diálogo permanente, consciente e autêntico entre trabalhadores e usuários que se encontram alijados do acesso a uma vida digna. Este é um desejo e uma esperança permanente que orienta nosso trabalho”. Na avaliação da assistente social, é preciso enraizar neste grupo de 65 servidores públicos um “novo ethos que os conecte mais ainda com estas populações empobrecidas”.
Para a formação dos/as funcionários na perspectiva da educação popular freireana, foi realizado entre outubro e novembro a Oficina de Metodologia Freireana, com a assessoria de Antonio Fernando Gouvea da Silva, professor da UFSCar. A partir do início de 2016 terá início a formação crítica sobre o trabalho, em oficinas com a população das regiões priorizadas. Como resultado do processo, se incentivará a formação de grupos de geração de renda nos territórios. No final do projeto, previsto para o segundo semestre do ano que vem, o Cefuria lançará uma publicação com a síntese do trabalho, que terá o objetivo de subsidiar a multiplicação da proposta em outras comunidades.
Metodologia freireana como ferramenta para superar desafios
Rodas de conversa entre a equipe do Cefuria e os servidores envolvidos com o trabalho em cada território resultaram em um mapeamento da realidade e dos principais desafios em cada Vila. Na extensa lista de dificuldades enfrentadas cotidianamente pela população e pelos servidores públicos estão o alto índice de criminalidade, falta de saneamento básico, de vagas em creches, de espaços comunitários, evasão escolar, déficit no transporte coletivo, pobreza, fragmentação e descontinuidade em parte das ações e obras do poder público.
As potencialidades também são inúmeras: equipes comprometidas com a transformação local, mulheres e jovens com potencialidade para liderar novas iniciativas, possibilidade de parcerias com associações e outros equipamentos públicos, vontade de mudança por parte dos moradores.
Apesar da boa formação e da composição multidisciplinar das equipes, os servidores apontam a dificuldade metodológica para o envolvimento da comunidade nas ações locais. Entre os motivos para isso está a diferença no tempo das demandas concretas (e muitas vezes urgentes) da comunidade e o tempo do serviço público, marcado pela burocracia típica da gestão do Estado.
Com base na escuta realizada com as equipes, identifica-se que a dificuldade na consolidação de processos participativos nas comunidades está ligado à rotatividade de técnicos, às mudanças de gestão e à interrupção de projetos iniciados pela prefeitura. Como conseqüência desse funcionamento do setor público, muitas vezes as populações ficam desacreditadas. Por isso é necessário retomar esse vínculo para a efetivação da transformação da realidade local.
Na avaliação de Ana Inês Souza, apesar dos limites e contradições da gestão em outros setores, existe uma concepção diferenciada no que se refere à área da assistência social na atual gestão. “Há um esforço de quebrar a ideia do assistencialismo, da manutenção da dependência. E aplicar a política de assistência social, profissionalizando as equipes e sensibilizando-as para um novo olhar sobre o trabalho social”.
Marli aponta que o cotidiano do trabalho é permeado por questões históricas e culturais da desigualdade social, que se expressam de múltiplas formas. “Fazer a leitura deste cotidiano não é algo fácil, pois implica em capacidade reflexiva e diálogo permanente com todos os envolvidos em qualquer ação do poder público”.
É neste contexto que a metodologia freireana se apresenta como instrumento necessário. Para Marli, as formações sobre a teoria de Paulo Freire já descortinaram um novo universo para vários servidores públicos no contato com a população: “Muitos estão renovados, motivados com este processo de escuta e leitura das questões trazidas pelas famílias, buscando se apropriar da produção freireana”.
Bem longe de ser uma receita a ser seguida, a metodologia freireana é um conjunto de princípios e de valores que tem por objetivo o exercício da democracia a partir de baixo. “É um esforço para sempre aprender. Não tem começo meio e fim”, reflete Ana Inês Souza, autora do livro “Paulo Freire – Vida e Obra”, publicado pela editora Expressão Popular, em 2001.
“A ideia é de um diálogo horizontal, não como uma didática, mas como princípio, que implica em ouvir as comunidades e trabalhar na perspectiva de que as soluções para seus problemas sejam buscadas coletivamente”. Para isso, será importante o papel dos técnicos como parceiros na mesma caminhada da comunidade, por melhores condições de vida.