O trabalhador no Capitalismo: entre circuitos de exploração e subordinação

Relato da quarta etapa do Curso de Agente de Desenvolvimento Local e Economia Solidária, desenvolvido no projeto Coopera Rua. A atividade trouxe para a discussão “O trabalhador no capitalismo”.

ADL 4 etapa (11)Mas ele desconhecia
Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
– Garrafa, prato, facão –
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário,
Um operário em construção. 

(Trecho do poema ‘O operário em construção’, de Vinícius de Moraes)

Por André Fedel e Franciele Petry Schramm 

A quarta etapa do Curso de Agente de Desenvolvimento Local do projeto Coopera Rua aprofundou e deu continuidade à discussão iniciada na etapa anterior, que debateu modos de produção e trabalho. Nesse encontro, os participantes ajudaram a pensar e caracterizar o mundo do trabalho no capitalismo e seus desdobramentos no dia-a-dia.

Para isso, aqueles e aquelas que participaram da atividade – que são pessoas em situação de rua ou que apóiam e venham a apoiar essa população – foram provocados a identificar e problematizar o conjunto de atividades de trabalho realizadas no contexto das ruas. Para isso, deveriam observar o setor da população que se liga a ele essencialmente pela atividade e pelo consumo, assim como as diferenças de tecnologia e organização.

No livro “O Espaço Dividido: Os dois circuitos da economia urbana nos países subdesenvolvidos” (1970)¹, Milton Santos traz a proposta de existência do circuito inferior e superior dentro do modelo econômico brasileiro. Segundo o autor, esse último circuito seria caracterizado pelo comércio varejista moderno: a indústria e o comércio de exportação, os bancos e os conglomerados multinacionais. Já o circuito inferior seria constituído de “atividades de fabricação tradicionais, como o artesanato e da prestação de serviços”. Seria caracterizado pelo sub-emprego, o não emprego ou a terceirização. Os dois circuitos, de maneira contraditória e conflituosa, se complementam e trazem a realidade do mundo do trabalho no capitalismo.

Divididos em cinco grupos de discussão, os participantes e as participantes trouxeram seus olhares e diálogos que fizeram anteriormente, contando um pouco mais das experiências que tiveram contato, e sistematizaram o debate em cartazes que foram apresentados ao grande grupo.

Pipoqueiros, catadores, vendedoras de artesanato, cuidadores de carros, são exemplos de algumas das atividades identificadas pelas pessoas que participaram do encontro.

“De tudo que a gente falou ficou muito nítida a informalidade dos trabalhadores”, apontou uma das participantes, que trabalha como servidora pública do município. “E nessa situação eles são muito explorados”, avaliou.

Caracterizado como trabalho sem registro oficial (como em Carteira de Trabalho ou documentação de trabalhador autônomo), o trabalho informal no Brasil representa 19,5% de todas as ocupações nas principais cidades do país, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em janeiro de 2015.

Inseridos na sociedade e no mundo do trabalho de maneira precária e desigual, os trabalhadores e trabalhadoras informais possuem pequenas ou nulas possibilidades de acessar políticas públicas e efetivar direitos trabalhistas.  “Existe um crença generalizada na sociedade que faz a gente se culpar de que, se não temos um emprego, não estamos trabalhando e somos vagabundos”, problematizou o educador popular do Cefuria, Luis Pequeno. O educador apontou para o fato de que trabalho é muito mais que emprego formal.  O trabalho não necessariamente exige pagamento, e é considerado todo esforço e gasto de energia para atender alguma necessidade humana.

>> Leia a cartilha O trabalho Humano : Alienação e Desumanização

Um dos participantes, integrante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), destacou que a falta de reconhecimento dos esforços empregados por quem trabalha informalmente é fruto do sistema em que vivemos. “A gente é doutrinado desde sempre para reproduzir esse modelo de trabalho e subordinação”, avaliou.

Exploração do trabalhador 

Então a onça disse:
– Um quarto é para mim porque sou a rainha dos animais. Outro quarto é meu porque sou a mais forte.
O lobo perguntou:
– Os outros dois são nossos, dona onça?
– Não! A outra parte é minha porque me chamo onça.
– E a última parte, dona onça? – Perguntou o gato, aflito.
– A última parte é de quem tiver coragem de tirá-la de minhas patas.
Os bichos saíram desconfiados, dizendo uns para os outros: sociedade de onça só dá certo para onça. Sociedade de gato é com gato.

(Trecho da Fábula ‘A liga das nações’, de Monteiro Lobato)

Em suas discussões, os participantes da quarta etapa do curso apontaram as constantes explorações a que estão submetidas trabalhadoras e trabalhadores no capitalismo.

Nesse sistema político e econômico, onde os meios de produção e distribuição são de propriedade privada, trabalhadores produzem bens e serviços com vistas ao lucro daquele que detém os meios de produção.

Trabalhando mais até mais de oito horas diárias, as pessoas contratadas recebem uma pequena parte da porcentagem daquilo que produzem.  Exemplo disso foi trazido por um dos participantes, que está em situação de rua. O rapaz, que trabalhava até 12 horas por dia como segurança privado para uma empresa do ramo, recebia da empresa apenas 25% do valor pago pela contratante – dos 300 reais pagos para o serviço diário de segurança, o rapaz recebia apenas 70 reais. Essa diferença entre o salário e o valor do trabalho é conhecida pelo termo mais-valia.

Nas discussões, os participantes apontaram que elementos como a grande quantidade de horas trabalhadas, as baixas remunerações, e a subordinação a tarefas que não sejam do agrado são frutos da exploração desenvolvida nesse sistema.

“A sociedade é um contrato, que não se pode negociar”, analisou o integrante do MST. “Existe um exército de ‘sobrantes’ em nossa sociedade. Se um não quiser, outro vai querer. Por isso o assédio, a pressão e a exploração sobre os trabalhadores”.

Apesar de muitos dos trabalhadores e trabalhadoras informais não terem vínculos direto com patrões, sofrem exploração de diferentes formas e por diferentes atores.

Alguns exemplos dessas situações foram expostas pelos participantes do curso a partir de tarefa dada anteriormente, que provocou a todos e todas a observarem as relações de trabalho que cerca trabalhadores informais, que atuam nas ruas da cidade.

Para desenvolver sua atividade, o pipoqueiro compra o milho da pipoca em grandes mercados ou lojas de distribuição, que adquirem a matéria prima de um agricultor, como identificou um dos grupos. Mas o pipoqueiro nem sempre tem total autonomia de seu trabalho. Muitas vezes ele é subordinado ao dono do carrinho de pipoca, que detém uma rede de carrinhos.

A partir do trabalho do pipoqueiro, outros trabalhos também são desenvolvidos. Como o do catador de material reciclável, que recolhe o papel utilizado para embalar a pipoca. E o ciclo tem continuação, como demonstra o cartaz abaixo:

ADL 4 etapa (16)

Sistematização da discussõo de um dos grupos, durante a atividade. A arte do material foi produzida por um dos participantes, que está em situação de rua.

Outro grupo também identificou situações de exploração entre profissionais de sexo. A subordinação a proxenetas (mais conhecidos como cafetões, que procuram e administram clientes para essas profissionais, ganhando parte de seus rendimentos) é exemplo disso. Da mesma forma, a atividade desenvolvida por essas pessoas também está relacionada a outros trabalhadores e trabalhadoras, através do consumo de roupas, assessórios e serviços (como estéticos). 

O poder do trabalhador

Na base da pirâmide social, o consumidor provê o Estado. Professora de uma universidade pública, uma das participantes chamou a atenção para a sustentação desse modelo: “Se a gente pára de consumir, a gente quebra essa hierarquia”.

Mas se a gente não consome a gente não vai ter [produtos, bens, serviços]”, avalia um rapaz, que está em situação de rua. “Mas para que a gente precisa ter?”, provoca a mulher, lembrando que o sistema capitalista, que visa o lucro, incentiva o consumo para além da necessidade de sobrevivência humana. Mas quem é o consumidor nesse sistema? “É o próprio trabalhador”, aponta a professora.

O poema ‘O operário em construção’, de Vinícius de Moraes, retrata essa situação. Responsáveis pela produção de determinadas partes de um todo – como de peças de uma máquina –, os trabalhadores e trabalhadoras consomem o que produzem, pagando muito mais do que receberam para produzir. “O trabalhador não sabe o poder que tem”, lembra a professora.

Brechas no capitalismo

Mas é possível reverter a lógica de exploração capitalista do trabalhador? Os/as participantes ajudaram a identificar formas de organização que acontecem nas brechas do capitalismo, como através da Economia Solidária.

A experiência de grupos autogestionários é antiga, mas vem sendo reconhecida recentemente. A lógica da produção e do consumo na Economia Solidária não visa apenas o lucro, mas principalmente a vida dos trabalhadores, das demais pessoas, e do ambiente que os cerca.

Educador popular do Cefuria, Luis Pequeno ajuda a refletir a naturalização da exploração do sistema capitalista. “Será mesmo que é natural do ser humano competir? Não! O princípio do ser humano é a solidariedade.”

Cooperativas, associações, clubes de troca são exemplos do desenvolvimento de iniciativas de Economia Solidária que se contrapõe a lógica produtivista do sistema capitalista.

“Mas acontece muita exploração dentro das próprias cooperativas”, apontou um dos participantes, que acompanha algumas experiências de catadores de material reciclável. A competitividade, a individualidade e a existência de hierarquia são características que divergem dos princípios da economia solidária e do trabalho cooperado.

“Onde tem organização popular, debate e informação, não tem mais exploração”, apontou Valdenice Fani, educadora popular do Cefuria que integra uma cooperativa de catadores de material reciclável. “Tem cooperativismo e autogestão”.

Materiais utilizados para essa etapa:

– Cartilha | O trabalho no Capitalismo: alienação e desumanização
Vídeo | O operário em construção, de Vinícius de Moraes
Vídeo | O Homem Capitalista, de Steve Cutts
– Fábula A liga das Nações, de Monteiro Lobato

Referências:

¹ SANTOS, Milton. O espaço dividido. Os dois circuitos da economia urbana dos países subdesenvolvidos. Rio de Janeiro: F. Alves, 1979.
Reuters Brasil | Trabalho informal cresce em meio a aumento das demissões.
Síntese dos indicadores sociais IBGE: Trabalho

Veja o relato de etapas anteriores do Curso de Formação de Agentes de Desenvolvimento Local e Economia Solidária:

>> 1ª Etapa: Trajetórias de Vida: reconhecendo diferenças e entrelaçando semelhanças
>> 2ª Etapa: Educação popular: trocando saberes, construindo sabedoria
>> 3ª Etapa: Modos de produção e trabalho: o ser humano enquanto sujeito

Veja a sistematização do debate de outros grupos:

ADL 4 etapa (12)ADL 4 etapa (15)ADL 4 etapa (14)

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

9 + 8 =