Modos de produção e trabalho: o ser humano enquanto sujeito

Relato da terceira etapa do Curso de Formação de Agentes de Desenvolvimento Local, desenvolvido pelo Projeto Coopera Rua. Essa etapa debateu “Modos de produção e trabalho”.

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 “Quem construiu a Tebas de sete portas?
Nos livros estão nomes de reis.
Arrastaram eles os blocos de pedras?”
Trecho da poesia
Perguntas de um trabalhador que lê, de Bertold Brecht

Por Franciele Petry Schramm

O resgate da memória e a reflexão de alguns modos de produção do trabalho contribuíram para os debates levantados na terceira etapa do Curso de Formação de Agentes de Desenvolvimento Local e Economia Solidária, que trouxe como temática “Modos de produção e trabalho”.

A atividade é desenvolvida dentro do projeto Coopera Rua, que reúne pessoas que estão em situação de rua, e outras que contribuam ou venham a contribuir com essa população.

Essa etapa resgatou algumas das mudanças no mundo do trabalho ao longo dos anos, com vista a provocar os participantes a pensar formas de trabalho que valorizem o ser humano – algo que nem sempre acontece, como percebido durante as discussões.

Coopera Rua_ADL_3 etapa (11)O trabalho humano tem início há cerca de 2 milhões de anos , quando o ser humano aprendia e produzia por imitação e pela necessidade de sobrevivência. É preciso entender que trabalho não é emprego, e não necessariamente exige pagamento. Para as educadoras Márcia Knapik e Luzia Ramos, autoras da cartilha ‘O trabalho humano’, “todo esforço, todo gasto de energia para atender alguma necessidade humana própria ou de outros é trabalho”.

Ao longo do tempo, o trabalho passou por diferentes processos de transformação. Para entender melhor essas mudanças, foram debatidos com os participantes quatro modos de produção do trabalho: comunal/primitivo, escravista, feudal, e capitalista. Discutir a lógica que rege esses modos de produção é importante para entendermos melhor as contradições do sistema que resultam na vulnerabilidade social e econômica e, ao mesmo tempo, para pensarmos a transformação desse modelo.

Para fomentar a discussão, cada participante recebeu uma imagem ou frase relacionada a algum dos quatro modos de produção. A partir de debate entre pequenos grupos, cada pessoa apresentou a todos os presentes sua imagem ou frase, e indicou a qual modo de produção o material estava relacionado.

>> Saiba mais na cartilha O trabalho Humano: das sociedades comunais ao modo de produção feudal

Diversos debates e análises resultaram dessa proposta. Os participantes apontaram que, em algumas situações, os exemplos expostos poderiam ser relacionados a mais de um modo de produção. “Isso ocorre porque cada modo de produção vai pegar elementos daqueles que existiram antes”, apontou André Fedel, educador popular do Cefuria.

Confira abaixo as discussões relacionadas a cada modo de produção:

homem-primitivoModo de produção Comunal/Primitivo: Nesse modo de produção, o trabalho era dividido conforme gênero e idade dos integrantes do grupo. Sem que houvesse exploração dos integrantes, a relação de trabalho era baseada na colaboração, com a distribuição igualitária dos resultados.

“Alguns exemplos desse modo de produção podem ser observados ainda hoje”, apontou um dos educadores populares do Cefuria. Em assentamentos, cooperativas, comunidades e povos tradicionais, por exemplo, lógica semelhante rege os trabalhadores.

Modo de produção escravista: Esse modo de produção é marcado pela separação de duas classes sociais: senhores e escravos. Nesse caso, trabalhadoras e trabalhadores não são reconhecidos como cidadãs e cidadãos.

“Será que, em algum momento, os senhores não são depois escravizados?”, questionou um dos participantes, que está em situação de rua. “Quem oprime é também oprimido”, respondeu outro. “A pessoa que quer dominar é escravo de algo: da ganância, da aparência…”.

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Modo de produção feudal:
O modo de produção feudal é desenvolvido a partir de duas principais categorias sociais: senhores e servos. Nesse caso, a terra e os meios de produção pertencem ao senhor; servos os utilizam mediante o pagamento de taxas.

Um dos participantes, que integra o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), lembrou que, durante a época do desenvolvimento desse modo de produção, as terras foram expropriadas dos camponeses pelos senhores feudais. “O maior crime que houve foi quando alguém cercou a terra, disse que era o dono e as pessoas acreditavam. E aí começa a propriedade”.

O termo “vagabundo” surge a partir desse contexto histórico, para indicar a pessoa que teve sua terra expropriada e por isso vagava.

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Modo de produção capitalistaNo modo de produção capitalista os meios de produção e distribuição são de propriedade privada, com vistas ao lucro. O capitalismo é marcado pelo desenvolvimento de duas classes sociais: proprietários (aqueles que detêm os meios de produção) e trabalhadores (aqueles que utilizam os meios de produção através do trabalho assalariado).

A cartilha ‘O trabalho no capitalismo’ explica que essa lógica é resultado do fim do sistema feudal. “A enorme população que sai dos feudos, agora ‘sem terra’, vai para as cidades se sujeitar ao trabalho assalariado, vendendo sua força de trabalho para sobreviver”, indicam as autoras Ana Inês Souza, Lourdes Marchi e Maria Machado.

Esse modo de produção insere uma nova perspectiva: a da fragmentação dos processos de produção.  Cada trabalhador e trabalhadora passa a ser responsável e especialista em determinada etapa da produção, sem ter conhecimento dos demais processos. Tal lógica resulta na alienação dos saberes.

ChaplinO filme “Tempos modernos”, de Charles Chaplin, traz para a reflexão o modo de produção desse sistema. “A pessoa vale menos que o ritmo”, indicou uma das participantes.

Características dos outros modos de produção foram apontadas como presentes no modo de produção capitalista. A frase “dominação pela violência”, relacionada ao modo de produção escravista, gerou amplo debate.

“É uma violência a gente passar na rua e fazer de uma pessoa invisível. O simples passar e não estar nem aí é uma forma de violência”, avaliou o analista técnico da Secretaria Nacional de Economia Solidária, que acompanhou essa etapa.

Coopera Rua_ADL_3 etapa (2)“A violência é marca desse sistema. É um sistema que violenta nós com a produção e com o consumo. É um sistema desumano. Ou nós o superamos, ou ele acaba com o planeta”, destacou um dos integrantes do MST.

Mas o analista da Senaes ponderou: “O capitalismo tem contradições, mas tem lado positivo. O desafio é a gente pensar como tirar o negativo”.  Trouxe como exemplo o desenvolvimento da telefonia móvel e questionou: “O celular é uma coisa boa. Mas como produzir o celular sem explorar?”

Outro participante, que integra o Movimento Nacional da População em Situação de Rua, provocou essa afirmação: “Mas produzir para que e para quem?”. Sendo os meios de produção de propriedade privada e visando o lucro – ou seja, a acumulação de capital – o modo de produção desse sistema econômico é excludente, como aponta a cartilha produzida pelo Cefuria: “O patrão compra a força de trabalho por um preço que permita a sobrevivência do operário e da família, pois os filhos dos operários e operárias de hoje serão o operariado de amanhã. Ou seja, o salário apenas garante a reprodução da força de trabalho necessária ao capitalismo”.

Coopera Rua_ADL_3 etapa (5)O aparente desenvolvimento proporcionado pelo capitalismo não tem como horizonte a satisfação de necessidades humanas, mas um maior consumo que proporcionará mais lucros para os detentores dos meios de produção. É preciso lembrar que esse desenvolvimento acontece às custas da exploração do outro.

“O capitalismo não tem leis. É impossível no capitalismo ter pleno emprego, dignidade, ter pessoas com terra, sem estar em situação de rua. O sistema precisa disso” apontou o integrante do MST.

Educador popular do Cefuria, Luis Pequeno, disse que é importante questionarmos o sistema onde estamos inseridas e inseridos. “Temos que romper a ideia de que as coisas foram e vão ser sempre assim”. Para ele, temos que ter em vista que as coisas “tem outro jeito”, para que sigamos na luta de transformação da realidade, como já vem acontecendo ao longo dos séculos.

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*Nesse relato, os nomes dos participantes não são divulgados, de forma a proteger a identidade de cada um.

Material utilizado:

Cartilha O trabalho humano: das sociedades comunais ao modo de produção feudal
Vídeo Tempos Modernos, de Charles Chaplin

Veja o relato de etapas anteriores do Curso de Formação de Agentes de Desenvolvimento Local e Economia Solidária:

>> 1ª Etapa: Trajetórias de Vida: reconhecendo diferenças e entrelaçando semelhanças
>> 2ª Etapa: Educação popular: trocando saberes, construindo sabedoria

Mais fotos do encontro:

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